29.8.12

dos Semáforos



Hoje enquanto estava parado num vermelho na praça de Espanha vi um dos habituais vendedores da revista Cais. Sem hesitar socorri-me do maior dom das cidades, o anonimato, e fechei a janela. Não a fechei por ter medo de ser assaltado, nada tenho que possa ser de alguma utilidade para um pedinte e se tivesse dar-lho-ia de bom grado. Também não o fiz por achar que o senhor terá algum tipo de doenças facilmente transmitidas pelo contacto visual desarmado, de resto tenho sempre óculos postos. Fechei a janela porque estava a passar na rádio uma música de que gosto e estava a cantar e não me apetecia ser incomodado ou ouvido por terceiros.
                 Mas enquanto via o primeiro carro rejeitar a publicação senti um nó no estômago. Nesse carro tinham tido a frontalidade de rejeitar a oferta, eu queria simplesmente não a ver. Que mundo é este em que alguém prefere ficar sossegado a ouvir a sua música e ignora os necessitados que lhe batem à porta? Que maravilha é esta que domina as cidades e que nos torna tão indiferentes para com os outros? Lembrei-me que as cidades são as pérolas da nossa civilização. Nelas a vida cresce e floresce, cria-se arte, criam-se ideias. A Carta dos Direitos do Homem é, quanto a mim, um dos mais belos expoentes da nossa civilização. Nela admite-se a igualdade entre todos os Homens e respeita-se a vida. Como é então possível que eu, que sei tudo isto e que gosto de me ver como criatura civilizada, fui capaz de recusar o contacto com uma vida em troco de uma música que posso ouvir a qualquer momento?
                E como se deve sentir o senhor cuja vida depende daquelas poucas revistas que consegue vender? Como será passar os dias junto a um semáforo, a respirar os escapes dos milhares de automóveis que lhe recusam o sustento? Que tipo de sociedade experimenta ele? Provavelmente apenas uma que não se preocupa com os direitos dos prisioneiros de Guantánamo, mas não hesita em mostrar a sua indiferença, a até nojo, por aqueles que não foram abençoados com um sustento.
                Esta comparação aterrou-me. Na verdade preocupo-me mais com a humanidade no trato dos pecadores que com a humanidade no trato dos miseráveis! Mas como? Porque é que a tortura naqueles que mataram ou destruíram me parece desumana e fechar a janela do sustendo de um pobre me parece melhor do que perder a música? Felizmente ficou verde e fui poupado ao culminar das minhas reflexões. Mas temo que a verdade seja esta:
Nunca fui tão cruel ao carregar num botão.