21.9.12

Isolamento III

Perdoem-nos os atentos seguidores da nossa novela! Aqui se segue mais uma pequena contribuição, na esperança duma rápida continuação:

               Ao chegar ao chalé encontrou Augusto esticado no sofá twitando e actualizando o seu feed do facebook. Anselmo preparou-lhe a canja o melhor que soube. Coseu muito a massa e as carnes e no final juntou-lhes um bom fio de azeite e hortelã do jardim para dar sabor.  Serviu o prato e tratou de ir arrumar a cozinha.
               Augusto encontrava-se bastante melhor da sua enfermidade desde que soubera que tinha a ligação à internet de alta-velociade estava finalmente instalada. Todo o tempo que Anselmo demorara a impressionar a aldeia com as sinfonias classicas dos grandes mestres foi passado pelo novo inquilino do chalé a discorrer nos seus blogs de opinião. As possibilidades de interacção mundial permitidas pelo simples toque dum dedo eram para ele como uma montanha-russa vertiginosa. *Clique* Comprou aquele livro raro que andava a regatear no e-Bay. *Clique* Postou essa compra simultâneamente no Twitter e no Facebook. Em alguns segundos já tinha likes e coments de inveja e admiração. *Clique* Aceitou num pedido de amizade que tinha pendente. *Clique* Entra na visita virtual do Louvre, na plena comodidade da sua poltrona. *Clique* Visiona os dividendos dos seus investimentos. *Clique* Participa naquele concurso de fotografia. *Clique* Confirma a proxima viagem à Tailândia. *Clique* *Clique* *Clique* *Clique* *Clique* *Clique* *Clique* *Clique* *Clique* *Clique* *Clique* *Clique* *Clique**Clique**Clique* *Clique**Clique* *Clique**Clique**Clique* *Clique*.
               E tudo isto ao magnifico som de Caetano Veloso na sua interpretação da Paloma. Entretanto Ana informara-o que ia para a Martinica com Nuno e que só o poderia visitar daí a duas semanas, mas que não se preocupasse porque o hotel tinha wireless em todos os quartos e ela levava algum trabalho para fazer, de modo que estaria sempre on-line. De resto isso pouca importancia tinha para Augusto, porque nessa noite já tinha marcado um jantar à luz do ecran com uma outra amiga que conhecera na blogosfera. Do canto do da cozinha Anselmo reparava em tudo. Parecia-lhe o seu senhor passava demasiado tempo sentado agarrado aquele seu ecranzito portatil que usava para tudo. Quando foi levantar a canja aproveitou para meter a colher:
- Ó Senhor Augusto, não me leve a mal, mas quer-me cá parecer que o Senhor passa demasiado tempo aqui em casa sem sair. Então não é que esteve todo este tempo sentado a mexer nesse seu portátil sem nunca levantar os olhos das letras, nem para ver o magnifico pôr-do-sol que esteve? Eu acho que o Senhor devia sair e apanhar mais ar, conviver mais com as pessoas. Afinal que bem lhe faz vir para o campo e passar o dia sentado num sofá? Para isso ficava na cidade, que aqui deve-se é sair e apanhar ar, conviver!

de Dali

    Num mundo onde o tempo escasseia valorizo cada vez mais a capacidade de alguém suspender a sua visão quotidiana e colocar tudo em perspectiva. Cada vez mais vejo que o pensamento é toldado por questões práticas de Senso-Comum que o limitam a uma bengala na auto-estrada do pré-pensado. Não vejo ninguém valorizar o Belo por ser Belo antes preferindo explicações pseudo-intectuais para questões que devem ser encaradas numa perspectiva mais real e lógica.
    Deixo-vos esta entrevista de Salvador Dali. Apesar de parecer muito grande aviso que os primeiros 55seg bastaram para me prender a todo o resto. É uma entrevista à moda antiga bem conduzida em que Dali fala de diversos aspectos da sua vida e obra.
    Devo alertar os espectadores que será proferida uma quantidade extraordinária de afirmações aparentemente pouco coesas. No entanto parece-me curioso como alguém que se assume surrealista consegue pensar e agir de forma mais coerente do que muitos de nós... O seu pensamento não é regido pela habitual mistura de bom-senso, preconceito e ideal que nos tolda a todos. Pelo contrário Dali segue uma frieza idealista que não teme o resultado das suas conclusões analíticas e, como tal, não hesita em partilhar os seus resultados com o mundo. Dali usa a lógica pura, sem marcas, sem corrupção, e através dela molda todos os constrangimentos da lógica corriqueira transformando-os em Arte quando os expõe ao espectador. Talvez seja isso que faz dele um grande artista, essa capacidade única para captar aquilo que o nosso juízo comum não percebe e transmiti-lo de forma clara e e não impositiva.
   A isto eu chamo um exercício de estilo. Dali despoja os ouvintes das suas considerações vulgares e embarca-nos num mundo de simbologia crua e imperativa.

Entervista a Salvador Dali, parte 1
Entrevista a Salvador Dali, parte 2
Entrevista a Salvador Dali. parte 3
Entrevista a Salvador Dali, parte 4
Entrevista a Salvador Dali, parte 5
Entrevista a Salvador Dali, parte 6
Entrevista a Salvador Dali, parte 7
Entrevista a Salvador Dali, parte 8

1.9.12

Nordicamente falando

     A cada dia que passa, descubro algo que me transcende ou que, simplesmente, surpreende. Será normal viver-se numa cidade onde as caixas de correio são abertas, ao alcance de todos? Porque haverá, na universidade, de uma linha de atendimento para denúncias de discriminação ou favorecimento de alunos? E que achar das igrejas protestantes onde as mulheres casadas também dão missas? Há realmente algo diferente nestas paragens. 

     Vi, há dias, uma obra clássica de Rosselini: Stromboli, de 1949. Karin e António apaixonam-se num campo de refugiados da Grande Guerra. Ela é lituana (encarnada pela bela Ingrid Bergman), enquanto ele, de tez morena, é um pescador da ilha de Stromboli, no Mediterrâneo. Decidem casar-se, após o que ele a leva para casa.

     Chegando a Stromboli, o cenário é desolador. A terra é árida e escura e as casas, da cor da terra, estão quase todas ao abandono. Podia ser o Algarve recém-ardido ou uma aldeia remota de Trás-os-montes. As ruas labirínticas estão desertas e as casas, toscamente acabadas, não oferecem qualquer conforto. Karin permanece em silêncio, tal é o choque, após o que diz que não conseguirá viver naquele lugar. António responde que não têm alternativa.

     À medida que o tempo avança, tudo fica mais sombrio. Karin, deprimida pela solidão, conta com o padre da aldeia para conversar. Queixa-se das condições de vida, ao que ele responde que a vida é assim mesmo, cheia de contratempos, pelo que temos de aguentar, rezar e ter fé na salvação. Em casa, as discussões de casal aumentam de dia para dia, sendo motivadas por questões simples como a decoração da casa: António ofende-se sempre que Karin esconde as imagens de santos e os retratos de família. Perante a vizinhança, que só pensa em emigrar, a situação torna-se cada vez mais difícil, pois a beleza nórdica de Karin atrai a atenção dos homens e as esposas reagem asperamente, acusando-a de soberba, vaidade e arrogância.

     Karin sofre e não tem dinheiro nem condições para sair da ilha. Tenta surpreender o marido indo visita-lo ao trabalho, mas fica horrorizada com o espectáculo sanguinário que é a pesca ao atum. 

     A narrativa é arrastada e lenta, bem ao ritmo da Itália sulista. Existe porém uma questão pendente: quem irá ceder. Conseguirá Karen fugir ou adaptar-se à ilha, vivendo o amor da sua vida? Trata-se de um filme intemporal que versa sobre as disparidades entre a Europa do Norte e do Sul, divididas por aquele muro indelével que são os Alpes, que a Eurovisão, os Fundos Comunitários e os nossos Erasmus difícilmente farão desaparecer.