Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se as nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamizada.
Rez-de-chaussée repousam sossegados,
Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama dos papéis pintados,
Reluzem, num almoço, as porcelanas.
Como é saudável ter o seu conchego,
E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quase sempre chego
Com as tonturas dumas apoplexia.
E rota, pequenina, azafamada
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo duma escada,
Como um retalho de horta aglomerada,
Pousara, ajoelhando, a sua giga.
E eu, apesar do sol, examinei-a:
Pôs-se de pé: ressoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ela se curva, esguedelhada, feia,
E pendurando os seus bracinhos brancos.
Do patamar responde-lhe um criado:
“Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais.” E muito descansado,
Atira um cobre ignóbil, oxidado,
Que vem bater nas faces duns alperces.
Subitamente — que visão de artista! —
Se eu transformasse os simples vegetais,
A luz do sol, o intenso colorista,
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!
Bóiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz às costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha
Toca, frenética, de vez em quando.
E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo orgânico, aos bocados..
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injetados.
As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças dum cabelo que se ajeite;
E os nabos — ossos nus, da cor do leite,
E os cachos de uvas — os rosários de olhos..
Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como dalguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que me lembrou um ventre.
E, como um feto, enfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja, vívida, escarlate,
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.
O sol dourava o céu. E a regateira,
Como vendera a sua fresca alface
E dera o ramo de hortelã que cheira,
Voltando-se, gritou-me prazenteira:
“Não passa mais ninguém!... Se me ajudasse?!”...
Eu acerquei-me dela, sem desprezo;
E, pelas duas asas a quebrar,
Nós levantamos todo aquele peso
Que ao chão de pedra resistia preso,
Com um enorme esforço muscular.
“Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!”
E recebi, naquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam dum excesso de virtude
Ou duma digestão desconhecida.
E enquanto sigo para o lado oposto,
E ao longe rodam umas carruagens,
A pobre afasta-se, ao calor de Agosto,
Descolorida nas maçãs do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.
Um pequerrucho rega a trepadeira
Duma janela azul; e, com o ralo
Do regador, parece que joeira
Ou que borrifa estrelas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.
Chegam do gigo emanações sadias,
Oiço um canário — que infantil chilrada! —
Lidam ménages entre as gelosias,
E o sol estende, pelas frontarias,
Seus raios de laranja destilada.
E pitoresca e audaz na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
Duma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.
E como as grossas pernas dum gigante,
Sem tronco, mas atléticas, inteiras,
Carregam sobre a pobre caminhante,
Sobre a verdura rústica, abundante,
Duas frugais abóboras carneiras.
Cesário Verde
A metáfora da fruta (e derivados) é um dos processos semânticos que mais me fascina. De facto, se a fruta não tivesse uma miríade de conotações, a língua portuguesa seria triste e enfadonha. Diria até que o PIB nacional entraria numa queda ainda mais profunda, com a insolvência ou emigração da comunidade de artistas pimba. Que seria do Quim Barreiros sem o sucesso estrondoso de Vendedor de Frutas? Ou mesmo a Rosinha sem o incrível vídeoclipe Só quer é fruta.. Morriam à fome. Cãodenados à carência alimentar, a imaginação esfumava-se e deixavam de ter acesso a um campo semiológico de inegável riqueza.
Semanticamente nutritivas são as courgettes; o kunámi, funini e o maracaté, a beringela ou o marmelo. Este último tem muito que se diga, pelas palavras a que, através da marmelada, deu origem. Repara como ninguém tem uma relação pacífica com esta substância doce: sabe muito bem, deixa um paladar característico e duradouro na boca, sem dar alguma vez a sensação de saciedade. A marmelada pode saber bem mas não enche e, em caso de abuso, enjoa facilmente.
Ainda assim há muito para escolher: Marmelada fina ou grossa, marmolite, marmex, marmota ou marmalade. Note-se que Doce de Marmelo é algo totalmente diferente da marmelada e semanticamente mais pobre. Como todas as compotas, de um modo geral... Compotas são da avó, aqueles frascos de vidro com a tampa candidamente oculta com um tecido vermelho e branco aos quadrados e um lançarote. É fruta mastigada que, apesar de pegajosa, não tem formas nem consistência. A geleia, todavia, contraria esta regra. Talvez seja pela textura ligeiramente diferente, tendencialmente gelatinosa, que, a saber, deve-se à pecticina da fruta. Ah, e ainda temos o mel, que poderá ser relatado com mais minúncia num destes dias.
A questão da fruta pode tornar-se delicada quando a questão da forma é levada in extremis. E isto é bastante sério. Não será certamente correcto ofender um cidadão chamando-lhe "figo" ou falar, em contexto algum, de fruta fora de época (não querendo especificar, para não ferir as susceptibildiades do/a leitor/a). Mesmo a questão do tomate (e subprodutos) é bastante polémica, razão pela qual não irei enverdar por aí.
Como poucas espécies escapam à sina da metaforização vernácula, uma simples enumeração chegará para conter potenciais obscenidades: pêssegos ou ameixas, bananas ou feijões, ginseng ou taínha? Perdão, acabei de enumerar uma espécie piscícola. Também não vou por aí. Já nem se pode ir ao mercado pedir "o mais verde que houver" ou "o maior que tiver".
Prefiro dedicar-me à apreciação de vinhos. Ficará sempre bem elogiar a cor de cereja e o aroma frutado do néctar.