4.2.12

d'O Artista'

   Não passou ainda uma hora desde que saí do fantasmagórico cinema onde fui ver o novo filme retro: O Artista. Sou admirador de filmes clássicos, não necessariamente a preto-e-branco, ou musicais ou grandes épicos cinematográficos. Para mim um filme clássico é um filme que exprime em si mesmo um certo modo de pensar e exprimir sensações através do grande ecran. Mas guardo em mim uma grande admiração pelo cinema primordial, aquele que é tão mudo que os Cinemas tinham pequenas orquestras a tocar ao vivo, e que é tão antigo que as imagens tremem e estão salpicadas de anos.

   Isto não se deve a nenhuma preferencia por esta estética, ou por desejos revivalistas. Acontece que o meu gosto em geral foi educado por uma avó que insistiu em mostrar-me aquilo que melhor há em todas as artes. Os filmes que via em criança eram principalmente Charlot, ao ponto de eu saber de cor todos os filmes (o que, graças aos céus, já não acontece!). No entanto isto habituou-me a olhar para os filmes e vê-los com os meus olhos. É por isto que gosto tanto de cinema mudo, porque te todas as fórmulas é aquela que maior margem de manobra deixa ao espectado uma vez que a a individualidade de cada um dá os toques ao filme. É como um livro em que a acção e as personagens são descritas, mas em que o leitor os imagina sempre de acordo consigo mesmo. De modo inverso o cinema mudo mostra-nos os locais e personagens, desenrola a acção visual, mas deixa-nos imaginar a eloquência com que é feita e permite-nos adivinhar coisas pela expressividade dos actores.

   Por outro lado gosto de filmes a preto-e-branco pois, geralmente, têm um enorme cuidado de fotografia, planos e luz, dado que os nossos olhos não são distraídos pela cor. Além disto o constaste provocado pelas luzes para simular profundidade de campo, a atenção à plasticidade das superfícies, à movimentação dos cenários e até a forma como a indumentária e maquilhagem são empregues é tão mais notória nestes filmes que quando são bons, são um enorme deleite para os meus olhos.

   Pois bem, era tudo isto que eu esperava ver neste filme. Uma revisitação de um clássico sem pretensões a ser algo mais. E foi isso mesmo que vi. Não quero falar do argumento, que é tão kitch como devia ser, para não estragar surpresas que ainda possam acontecer. Mas posso falar do resto. A Banda sonora é agradável e singela, sem grandes requintes própria para este tipo de filmes. Mas o seu emprego é muito cuidado, a acção está sincronizada com o compasso da música (característica que muito prezo no estilo) mas é com mestria (e direi até um certo savoir faire muito bem estudado) que os momentos de silencio são escolhidos. Na verdade julgo que nunca num cinema consegui sentir a sala num silencio opressivo de respiração cortada enquanto um beijo romantico é projectado no ecran. A ideia de cortar completamente o som nos momentos em que o ruído seria maior foi um toque de génio que imprimiu em mim a perfeita consciência de que toda a equipa sabia o que estava a fazer.

   Quanto à fotografia está também muito boa, a luz é utilizada de forma muito apropriada, os planos são bem escolhidos, é explorado o potencial da ausência de cor para atingir planos e reflexos impossíveis noutra situação. Isto é notório numa mudança de plano que parte do artista e acaba com a imagem dele reflectida não só no tampo da mesa como no whisky que tinha lá sido derramado. De resto nada mais podia desejar de um realizador vindo do bom vale do Reno e da fértil Île-de-France. Por fim creio que devo salientar ainda dois momentos muito interessantes. Aquele em que num sonho do artista todos os objectos e pessoas falam e têm ruídos, menos ele. Julgo que nesta cena a angustia do silencio é muito bem expressa pelo turbilhão de som que fere os ouvidos mas pela total ausência da voz humana. Ouvem-se passos, telefones, relógios, cadeiras, pés a arrastar, até o vento sopra enquanto o actor grita todas as entranhas da sua alma. Mas não se faz ouvir. Fiquei estarrecido. Um outro ponto será tão simplesmente o final, em que, por fim, se ouve a voz de alguém embora o silencio seja tão perfeito e necessidade tão pouca que se torna quase um contra-senso. Mas parece-me que este momento serve para fechar o filme em si mesmo, como aquilo que é: uma revisitação de um clássico.