7.2.12

Na Real Gana

Sempre quis imaginar como seria o nosso peculiar país se 5 de Outubro tivesse falhado. Em vez de ser o Darth Vader a hastear a bandeira em 2010, o rei D. Manuel II podia te-lo feito em 1910, depois de ter voltado do cais da Ericeira, aliviado por saber que a agitação da carbonária e os confrontos na Avenida da Liberdade não tinham passado de um falso alarme.

Se assim tivesse sucedido, um rei, quiçá o sucessor Dom Duarte Segundo, de cognome O Farfalhudo ou O Bon-vivant, falaria à nação da varanda poente do Palácio da Ajuda. Depois de um ataque de gaguez - porque, por influência inglesa, a gaguez passou a ser moda - espera-se que o rei apareça. Momento de suspense. Na televisão, parou o futebol, a missa de Fátima e as escolhas do Marcelo (porque a semana vai a meio e ainda há livros para mostrar).

El-rei vai soltar a sua goela doirada. Os fotógrafos da Caras estão lá em baixo, vagueando entre os eléctricos da Carris e um ajuntamento de ciganos do bairro social vizinho. Estão de lentes em riste, ansiosos por apanharem sua sumidade, a quem a mãe chamava Dudu, enrolando o bigode de monárquico. Mas o rei nunca mais aparece na varanda. Correm rumores de que o seu secretário está à espera da pen USB do ministro das finanças, com o sempre fatídico Orçamento de Estado. Mas não é isso que a multidão vê: pela calçada da Ajuda sobe um impressionante exército de automóveis. São Volvos, Mercedes e BMW's, todos da mesma cor. Os coches ficaram lá em baixo, é preciso que o rei decida o que fazer ao faraónico e magnífico museu alegadamente feito para os receber. Certo é que os vidros grossos e escurecidos não deixam desvendar os rostos que seguem. Há quem diga que são os mais de 300 duques e os 1500 marqueses com os respectivos chauffeurs.

O sol põe-se na cidade dormente. A Judite e a Manuela acotovelam-se, falando em directo para as câmaras e entretendo os espectadores. Falam dos recentes escândalos com o Procurador. Parece que o Barão de Avintes aconselhou o Duque de Gondomar a processar o Estado, porque o rei ainda não foi lá de TGV, pelo que a linha ainda não foi construída. O Marquês da Reboleira também deve ganhar um processo; ao fim de 15 anos deverá ser reconhecida a injustiça que é a atribuição de um título de nobreza tão desprovido de charme.

Chega o rei à varanda, em pompa e circunstância. O microfone funciona bem e faz-se ouvir.

- Portuguesas e portugueses, d'aquem e além mar, falo-vos como vosso Rei de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-Mar em África, ex-Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia. Vivemos num momento difícil e exigente, em termos reais, absolutos e relativos. Mas não devemos relativizar a questão. O dinheiro que recebo não dá sequer para pagar o jardineiro e tenho porcelanas de Cochim da Fundação Real Gana para restaurar. Cientes do inegável valor patrimonial destas peças, únicas do mundo, iremos aumentar os impostos. Apelo ao bom senso dos portugueses; deveis saber que não voltarei a decretar aumentos de impostos e, em contrapartida, até ofereço a cada criança um computador, o Álvares Pereira 2.0. Desejo-vos um feliz natal, o melhor que alguma vez tenham tido.

Na Boca do Inferno, ainda há quem venda souvenirs. Será que as bandeiras made in china têm pagodes no lugar dos castelos? É difícil imaginar um cenário a azul e branco. Certo é que as canecas com a esbelta figura do rei estampada continuam a ser um sucesso, juntamente com os postais da Sissi.