31.1.12

das Múmias


Confesso que tenho alguns estranhos hábitos. Entre eles encontram-se o de ler todos os dias antes de adormecer, o de me sentar preferencialmente em poltronas, o de dar mais importância ao lanche que a outras refeições, chegando mesmo ao ponto de fazer lanches temáticos, mas tenho um hábito um pouco mais peculiar… Não será um hábito diário ou semanal, nem sequer mensal, no entanto é um hábito. Tenho-o desde que me considero gente e é para mim algo sem o qual me sentiria menos cómodo na vida que levo. De facto, tenho o hábito de fazer uma visita anual às duas múmias incas que se encontram no Museu do Carmo, em Lisboa.
A razão porque o faço não se prende com nenhuma particular devoção religiosa, antes se relaciona com aquilo que sinto de cada vez que miro aqueles sorrisos rasgados e cabelos secos. Desde pequeno que tenho um fascínio por múmias, sempre as vi como uma das mais nobres formas de se passar a escuridão eterna. Sempre tive uma grande reverência por aqueles que tiveram vidas dignas de conquistar a eternidade pela preservação daquilo que corporiza a sua alma. Quando penso nos cuidados que os egípcios dedicavam aos seus mortos, construindo-lhes grandes casas e provindo-as de todos os elementos essenciais à vida no além, ou no embalsamamento do corpo para que o ser já defunto não caia no esquecimento, vejo esta atenção pelos mortos manifestada de forma quase palpável.
No entanto sempre me enchi de tristeza pela múmia exposta no Museu Nacional de Arqueologia. Da última vez que lhe fiz uma visita, há alguns anos confesso, encontrava-se erguida por detrás de um vidro grosso com o corpo envolto nos seus trajos provectos mas com o ombro esquerdo corrompido por algum admirador menos solícito. É sem dúvida uma múmia solene que enfrenta o tempo de cabeça erguida e numa postura digna de nota. Infelizmente toda esta atenção prestada, aquando da sua morte, à sua vida enquanto defunto parece-me danificada pela forma impudica como deverá ter sido retirada do seu local de repouso para ser exibida como um qualquer armário velho, num palácio demasiado cheio. Dou este exemplo por ser aquele que me é mais familiar, no entanto sinto o mesmo por todas as múmias egípcias de grandes Homens e Mulheres que depois de uma vida tranquila nos seus túmulos vêm a sua paz e virtude arrasada por enchentes de turistas ou crianças que passam por eles sem lhes prestar qualquer homenagem, sem pensar que aquilo que vêem por detrás das vitrinas foi em tempos alguém, porventura muito mais importante do que aquilo que o mirone possa aspirar a ser. Pior! Sem que ninguém pense que essa relíquia de um Homem poderá ter sido forçada a passar esta violação na companhia de alguém pouco falador e que lhe é antipático.
                Pois é, compadeço-me da nobreza imponente a que as múmias egípcias estão actualmente sujeitas. No entanto o par de múmias incas existente no Museu do Carmo provoca em mim sensações diferentes. Isto talvez se deva estarem expostas numa sala que poderia tanto ser um museu como a biblioteca de uma casa, ou pelo próprio Museu ser menos movimentado. Pode também dever-se pela pose muito menos solene de pessoa agachada e sorridente, enfeitada com bugigangas coloridas tão contrastantes com a sala e o ambiente geral que se tornam inadequados.
De facto estas múmias incas mantêm sobre mim um poder de encantamento muito maior do que as egípcias. Não me refiro à mística da coisa mas simplesmente à postura delas face ao oblívio.                Os incas tinham também o culto dos mortos e acreditavam que eles renasciam no Além, mesmo sem uma múmia para preservar os seus corpos. Apenas os Imperadores e aristocratas eram embalsamados. Isto devia-se ao facto destas múmias terem, para os incas, propriedades mágicas, curativas e premonitórias. Talvez seja por isso têm um aspecto mais vivo e alegre, uma vez que mesmo depois de mortas as energias da pessoa continuam vivas. Ou então são simplesmente os adereços pitorescos com que se decoram que tornam a sua morte tão mais apetitosa. De qualquer modo sinto a necessidade anual de visitar os dois jovens, porque trata de dois jovens, que habitam as vitrinas do Museu do Carmo. Não só para apreciar os seus cabelos de um tom tão fascinante nem mesmo para recobrar energias místicas. Vou simplesmente para que me inspirem a encarar a Morte com um sorriso nos lábios e para, e isto é pura arrogância da minha parte, que não sintam que o mundo as vê como simples potes numa sala.