1.2.12

Formatação

Caía a noite. Na escuridão crescente, a cidade ganhava luz, cor e movimento. Quem se atrever a subir ao cimo das paredes frágeis daquele moinho, verá a anatomia da urbe. Mas naquele momento desenhavam-se as artérias, as veias e todos os raminhos capilares, que alastram para a escuridão incerta e caótica dos campos em redor. Tudo isto em movimento, num fervilhar sem fim e, aparentemente, sem finalidade. Não, a cidade não pode parar. Tempo é dinheiro, dinheiro é mercadoria, e o rebuliço não tem fim.

Dentro de cada luz frenética, que vagueia na capilaridade urbana, há um (e raramente mais que um) ser pensante. Mas quantas pessoas pararão para pensar sobre o sentido daquilo que fazem? Bem, uma hora passada sobre o asfalto da Avenida do Brasil dará certamente para ouvir, na rádio, os últimos desamores e a última casa do Cristiano Ronaldo, impressionar a dáma com os baixos das colunas, enchouriçar o tabaco, ligar os néons azuis para iluminar as fugas de óleo sobre a estrada, fornecidas pela garagem chunning ou simplesmente buzinar "na desportiva". No meio de tanta mediania, é natural que certos artistas queiram furar o esquema, através de brilhantes performances, seguindo na berma, no passeio ou no separador da avenida, apenas para terem os cinco minutos de fama que o Andy Warhol lhes reservou.

Fala-se de tempos difíceis. Vejo, porém os carros na rua e um presidente da república a viver acima das suas possibilidades e tão abonado como o tuga médio. A verdade é que, havendo pobreza, pode não haver miséria. E aqui falo de duas noções distintas, que convém esclarecer. Um indivíduo pode ser pouco abonado, dono de parcas quantias monetárias. Pode até passar fome, sem ser miserável. Porque a miséria prende-se com a falta de valores culturais, isto é, a falta de estima ou o desprezo pelas origens, pela cultura e pelo meio envolvente. Com materiais humildes, o templo xintoísta de Yasaka não será de todo miserável. É que, ao contrário das latrinas dos castelos medievais, feitos com os mesmos materiais, segue proporções harmoniosas e integra-se no meio natural, como se tivesse brotado antes de a Terra nascer. Já o Centro Comercial Colombo, o Loures Shopping, a igreja Caravela ou o hotel Bellagio de Las Vegas são espaços miseráveis, que testemunham a apatia, a falta de valores e de paz interior; nem com remodelações escapam ao poder inexorável do bulldozer.

A apatia corre o risco de se apoderar da mole humana. Há mesmo multidões adormecidas ao duche quente ou a ver as Tardes da Júlia e a Casa dos Degredos. Pessoas com as mordomias do duche quente e vazia no prato, a quem nada falta. Senão repara, para o capitalismo, não interessa que alguém morra à fome. Isso seria chato. As vendas (de pace makers) diminuiriam. Basta, portanto, que as pessoas tenham dinheiro para comprar cds da britney spears ou beber coca-cola.

Acredito que podemos, com menos recursos, suprimir a miséria. É talvez por isso que vamos à mesma faculdade...